O retrato de um Retrato
Se você me perguntasse exatamente quando nasci, não saberia te responder. Cada passada em meu tecido deu um pouco de vida à mim, mas só no tardar da minha existência que pude me compreender como algo completo. Já estive em muitas casas, fui a muitos museus e conheci diversos famosos. Já ouvi confissões sussurradas de amor e de culpa. Vi histórias começando e seus pontos finais.
Mas de todos esses anos, uma pessoa não me escapou ao tempo. Uma jovem, provavelmente filha de algum curador ou ricão de bom gosto, que sempre passava as tardes ao meu lado. Eu morava no corredor nessa época, com outros quadros. Era um corredor bonito, povoado com móveis de madeira e lustres cristalizados. Quando cheguei tentei conversar com os outros como eu, mas acho que eles não estavam muito afim de papo. A própria garota, uma criança quando a vi pela primeira vez, me estranhou à primeira vista. Lembro perfeitamente de seu cenho franzindo e a forma como entortou a cabeça, mas não sabia que as coisas mudariam a partir daí. Nos meses seguintes, um banco de pernas curvas e estofado avermelhado foi posto a minha frente. Nele cabiam três pessoas grandes, mas só uma ali sentava: a jovem criança. Ela parece usar o espaço para escrever algo ou fazer desenhos em seu caderninho. Suspeito que algum dia eu tenha sido objeto desses desenhos. Desse dia em diante, passamos a criar um vínculo.
Nos anos que chegaram, recebi uma promoção. Fui levado ao quarto da jovem, de frente para uma janela que dava visão a uma grande árvore de galhos firmes e bons frutos. Por muitas vezes ouvi suas confissões, felizes e trágicas, e me confessei para ela também, como todo bom amigo faria. Nesses momentos ela dizia que eu mudava de cor e meus padrões dançavam. Nunca me senti tão vivo quanto nesses anos que passamos juntos. Acompanhei ela enquanto esteve jovem e cheia de vida... e quando adoeceu e teve seu vigor roubado. Faltava-lhe folego para confessar se pra mim, mas ainda sentia o pesar de seu olhar. Não demorou muito para me transferirem ao hospital depois que ela foi. Os médicos não tinham coragem de lhe dizer a verdade, mas eu via a verdade em seus olhos. Em seu último dia de vida, ela juntou seu último punhado de fôlego e fez um desejo: "quero viver com você."
Eu voltei ao corredor de sua casa, recebido com desdém pelos quadros novamente. Dessa vez as pessoas que passavam por mim se espantavam com a minha aparência: "nunca gostei desse quadro, mas ele parece mais triste que o normal..."
Os dias pareceram passar mais devagar desde então. O banco à minha frente lentamente cultivava uma camada cinza de poeira fina. Um dia acordei e o banco não estava mais lá, nem o quadro que ficava acima do banco havia permanecido. Achei que seria a hora que me removeriam de vez dali, mas a surpresa foi muito melhor: um Retrato da jovem pendia sorrindo na parede, belo até a última pincelada, cheio de cores e cheio de vida.
Senti uma mistura de felicidade e tristeza que me deixou confusa. Muito bom.
ResponderExcluirMuito bom, me senti conectado aos personagens da história e a perspectiva do protagonista é muito interessante.
ResponderExcluir